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Faixa Sonora

domingo, 16 de dezembro de 2012

LÁGRIMAS OCULTAS


Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida…

E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago…
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim…

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!



(Florbela Espanca) 1894 – 1930

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

TU ÉS...

Tu és em funda meia-noite
Uma praia morta num mar de silêncio,
Uma praia morta: Esquecimento!
Tu és em funda meia-noite.

Tu és em funda meia-noite
O céu em que foste estrela por vezes,
Céu em que já não florescem deuses.
Tu és em funda meia-noite.

Tu és em funda meia-noite
Um não-concebido em ventre de amor,
O que nunca foi e não tem ser!
Tu és em funda meia-noite

GEORG TRAKL (1887-1914)
Outono Transfigurado
(tradução de João Barrento)

domingo, 9 de dezembro de 2012

ELA LEMBRA A ESQUECIDA BELEZA



Ao apertar-te nos meus braços aperto
O meu coração contra essa beleza
Que há muito desapareceu do mundo;
As coroas de joias que reis lançaram
Aos charcos sombrios, quando os exércitos debandaram;
As histórias de amor tecidas com fios de seda
Por sonhadoras damas em telas
Que nutriram a traça assassina;
Rosas de outrora
Que nos seus cabelos as damas entreteceram,
Lírios frescos de orvalho que as damas levavam
Por tanto corredor sagrado
Onde tais nuvens de incenso se elevavam
Que somente Deus não fechava os olhos:
Porque esse pálido peito e a mão indolente
Chegam de uma terra mais sonhadora,
De uma hora mais sonhadora do que esta;
E no teu suspirar entre beijos
Ouço a branca Beleza que também suspira,
Durante horas em que tudo deve consumir-se como o orvalho,
Mas chama sobre chama, abismo sobre abismo,
Trono sobre trono no meio do sono,
Pousadas as suas espadas sobre os joelhos de ferro,
Mediram nos seus altos mistérios solitários.
 
W.B. YEATS (1845-1939)
Uma Antologia
(tradução de José Agostinho Baptista)

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

LEMBRAS...


Lembras-te, meu amor,
Das tardes outonais,
Em que íamos os dois,
Sozinhos, passear,
Para fora do povo
Alegre e dos casais,
Onde só Deus pudesse
Ouvir-nos conversar?
Tu levavas, na mão,
Um lírio enamorado,
E davas-me o teu braço;
E eu, triste, meditava
Na vida, em Deus, em ti…
E, além, o sol doirado
Morria, conhecendo
A noite que deixava.
Harmonias astrais
Beijavam teus ouvidos;
Um crepúsculo terno
E doce diluía,
Na sombra, o teu perfil
E os montes doloridos…
Erravam, pelo Azul,
Canções do fim do dia.
Canções que, de tão longe,
O vento vagabundo
Trazia, na memória…
[...]
 
TEIXEIRA DE PASCOAES (1877-1952)
Para a Luz. Vida Etérea. Elegias. O Doido e a Morte


sexta-feira, 23 de novembro de 2012

SE OUSASSE DIZER...


Se ousasse dizer a boca
o que sente a alma minha,
senhora, eu tocar queria
onde a camisa vos toca.
 
Não é muito eu não dar caça
ao receio de perder-vos,
pois, senhora, no querer-vos
do mesmo modo se passa:
do chapim até à boca
vos adora a alma minha,
e só tocar eu queria
onde a camisa vos toca.
 
Se vos visse eu, ó senhora,
sem camisa vos tocasse,
e outro bem não desejasse
esta alma que vos adora,
e então olhos e boca
tocasse esta boca minha,
o demais eu tocaria
onde a camisa vos toca.
 
Sinto eu estranhamente
porque ela está-vos tocando,
e com morrer desejando
o que ela goza e não sente;
já que dif’rença há bem pouca
dessa tocadela à minha,
senhora, eu tocar queria
onde a camisa vos toca.
 
Jardim de Poesias Eróticas do Siglo de Oro
(tradução de José Bento)

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

AI, COMO TE QUERIA...




Ai, como eu te queria toda de violetas
E flébil de cetim…
Teus dedos, longos de marfim,
Que os sombreassem jóias pretas… 
E tão febril e delicada
Que não pudesses dar um passo -
¬Sonhando estrelas, transtornada,
Com estampas de cor no regaço…

Queria-te nua e friorenta,
Aconchegando-te em zibelinas ¬–
Sonolenta,
Ruiva de éteres e morfinas. ..

Ah! que as tuas nostalgias fossem guizos de prata -
¬Teus frenesis, lantejoulas;
E os ócios em que estiolas,
Luar que se desbarata. . .
[…]
Teus beijos, queria-os de tule,
Transparecendo carmim ¬–
Os teus espasmos de seda…

- Água fria e clara numa noite azul,
Água, devia ser o teu amor por mim…

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO (1890-1916)
Poemas Completos

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

MEMÓRIAS



A minha memória ainda está viva…
E o teu vulto também…
Fomos galhos de uma
mesma roseira…
de perfume sutil…
de matriz indelével…
Lembranças não se apagam…
Saudades não se adormecem…
Um grande amor nunca se esquece…
Como fera, nunca perco
o faro… e seu cheiro, meu bem,
continua sensível…
E quando o sinto,
minh’alma pede socorro,
e meu coração sufoca o grito…
É o cio do amor que
inalo, nessa hora…
É a doce vontade de ter-te
Novamente em meus braços,
que sozinho aspiro…
É me inútil, tentar substituí-la…

(João Assis)

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

JÁ QUE SENTIR...


Já que sentir é primeiro
quem presta alguma atenção
à sintaxe das coisas
nunca há-de beijar-te por inteiro;

por inteiro ensandecer
enquanto a Primavera está no mundo
o meu sangue aprova,
e beijos são melhor fado
que sabedoria
senhora eu juro por toda a flor. Não chores
- o melhor movimento do meu cérebro
vale menos que o teu palpitar de pálpebras que diz

somos um para o outro: então
ri, reclinada nos meus braços
que a vida não é um parágrafo

E a morte julgo nenhum parêntesis


E. E. CUMMINGS (1894-1962)
xix poemas

terça-feira, 4 de setembro de 2012

DESPRENDE-TE, CORAÇÃO...


Desprende-te, coração, da árvore do tempo,
soltai-vos, folhas, dos ramos esfriados,
outrora abraçados pelo sol,
soltai-vos como lágrimas de olhos largos de longes.
 
Esvoaça ainda a madeixa dias inteiros ao vento
na fronte tisnada do deus do campo,
sob a camisa aperta o punho
já a ferida aberta.

Por isso resiste, quando o dorso macio das nuvens
voltar a curvar-se para ti,
não te iludas se o Himeto te encher
de novo os favos.

De pouco vale ao lavrador uma erva na seca,
de pouco um verão, face à nossa grande estirpe.

E que testemunha afinal o teu coração?
Entre ontem e amanhã balança,
silencioso e estranho,
e o seu bater
é já a sua queda para fora do tempo.

INGEBORG BACHMANN (1926-1964)
O Tempo Aprazado
(Tradução de João Barrento)

domingo, 26 de agosto de 2012

NÃO DIZIA PALAVRAS....


segunda-feira, 13 de agosto de 2012

MINHA MUSA


Senhora da manhã vitoriosa
E também do crepúsculo vencido.
Ó senhora da noite misteriosa,
Por quem ando, nas trevas, confundido.

Perfil de luz! Imagem religiosa!
Ó dor e amor! Ó sol e luar dorido!
Corpo, que é alma escrava e dolorosa,
Alma, que é corpo livre e redimido.

Mulher perfeita em sonho e realidade.
Aparição Divina da Saudade…
Ó Eva, toda em flor e deslumbrada!

Casamento da lágrima e do riso;
O céu e a terra, o inferno e o paraíso,
Beijo rezado e oração beijada.

TEIXEIRA DE PASCOAES (1877-1952)
Senhora da Noite

sábado, 11 de agosto de 2012

ESSE CHEGAR...

Esse chegar de repente e abraçá-la,
esse pôr-se a lutar ele com ela,
esse cruzar suas pernas com as dela,
aquele poder mais ele e derrubá-la;
 
aquele vir abaixo, e ele sobre ela,
e ela cobrir-se e ele destapá-la,
esse pegar na lança e espetá-la,
e esse teimar dele até metê-la;

esse jogo de lombos e cadeiras,
e as palavras tão meigas e amorosas
que um ao outro murmuram, apressados;

esse voltar e andar de mil maneiras,
e fazer neste transe outras mil coisas
nas legítimas perdem os casados.

Jardim de Poesias Eróticas do Siglo de Oro
(tradução de José Bento)