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Faixa Sonora

terça-feira, 8 de outubro de 2013

A BELA DE YU


Flores de Primavera, lua de Outono, acabam quando?
De tudo o que é passado – que sei eu?
A outra noite, no meu pequeno pavilhão, outra vez o vento leste.
Ó país perdido, quando a lua brilha, dói olhar para trás.

Balcões esculpidos, escadas em mármore – hão-de permanecer.
Só os rostos, outrora radiantes, mudaram.
Reflecte – aí, quanto sofrimento.
É tão-só um rio no pleno fluxo da Primavera
E que corre para o mar, a leste.

LI YU (937-978)
Uma Antologia de Poesia Chinesa

(tradução de Gil de Carvalho)

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

ALMA QUE...


Alma que da minh’alma se aproxima

E me desperta do meu sonho em meio

E nos prenda e nos cinja o doce enleio

Como a dois lírios prende e enlaça um vime.

E assim desta existência que me oprime

Pois que já n’ela achar o Bem não creio

Vamos subamos lado a lado ao seio

Infinito do Deus Calmo e Sublime!

 

ÂNGELO DE LIMA (1872-1921)

Poesias Completas

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

DESAFIO



Adoro-te         nem imaginas quanto

e tu respondes

não imagino?

eu sussurro algo ao teu ouvido e tu dizes

tanto?

admiro-te muito
tanto ou mais
não perguntes quanto
que surpresa ainda cais      da cadeira
mesmo que estejas de pé
eléctrica pela brilhante execução
quando acontecer quero-te como algoz
a ver se pelo menos antes do fim
nus deixam estar a sós
amo-te mais que a mim
não   que não me amo muito
amo-te mais que a ti  só por ser impossível
sabes             adoro desafios
queres cantar ao desafio?
queres?
mas espera       só vale canções de amor


João Negreiros
(O Cheiro da Sombra das Flores)

domingo, 28 de julho de 2013

A TARDE NO MAR


A tarde é de oiro rútilo: esbraseia.
O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,

Pousa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue o seu destino!
E o sol, nas casas brancas que incendeia,
Desenha mãos sangrentas de assassino!

Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar…

E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas,
São as asas do sol, agonizantes…


(Florbela Espanca)


segunda-feira, 22 de julho de 2013

CANÇÃO


Sol nulo dos dias vãos,
Cheios de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
A quem não entras na alma!

Que ao menos a mão, roçando
A mão que por ela passe,
Com externo calor brando
O frio da alma disfarce!

Senhor, já que a dor é nossa
E a fraqueza que ela tem,
Dá-nos ao menos a força
De a não mostrar a ninguém!

FERNANDO PESSOA (1888-1935)
Ficções do Interlúdio


sábado, 20 de julho de 2013

INCONSTÂNCIA


 Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer…
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando…

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também… nem eu sei quando…


(Florbela Espanca)

segunda-feira, 15 de julho de 2013

RETRATO


Neste retrato
estás a olhar para diante, para sempre, para muito além,
sabe-se lá por que saudade, por que mágoa, mas além,
onde talvez houvesse um cofre aberto para os sonhos que devastei.
pérolas queimadas,
pérolas negras do medo e da paixão,
metais preciosos roubados às forjas de Deus,
tudo o que neste retrato desenha,
com incandescente ferro e pincéis,
ardor, fúria, tenacidade,
mas nunca a renúncia,
nunca as marcas do luto e da febre sobre a lua amarela.
 
Neste retrato eras tu – e não poderia ser eu? ­
com o tempo por cima, a passar impiedosamente,
o tempo do declínio, o tempo do pó,
tudo o que hoje se comprime nesta moldura de prata,
ao centro da mesa, tristemente.
 
JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA (1948)
Biografia

sexta-feira, 31 de maio de 2013

VEM!




Vem como a gazela do deserto
Obrigada a ziguezaguear em nervosa pressa
Atravessando os trilhos e voltando
Com medo do ganido dos cães e do caçador;
E que finalmente se decide por uma veloz linha recta
Com um olho no lugar deixado.
Estás a salvo dentro da casa da amada
Beijando-lhe as mãos, fazendo-lhe
A sincera proclamação do teu amor,
Fazes tudo isto
Tudo isto no interior da grande e pré-concebida organização
Da deusa de oiro.

Poemas de Amor do Antigo Egipto

(tradução de Helder Moura Pereira)

segunda-feira, 6 de maio de 2013

AMOR QUE MORRE


O nosso amor morreu… Quem o diria!
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!

Bem estava a sentir que ele morria…
E outro clarão, ao longe, já desponta!
Um engano que morre… e logo aponta
A luz doutra miragem fugidia…

Eu bem sei, meu Amor, que pra viver
São precisos amores, pra morrer,
E são precisos sonhos para partir.

E bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro riso
De outro amor impossível que há-de vir!


(Florbela Espanca)

domingo, 10 de março de 2013

A ROSA


Sabia de uma rosa que me ia pouco a pouco
estirando e afrouxando, corpo a corpo, até à alma.

A beleza não tem limites nem aroma
mas durante longos meses senti sua fragância.

Estivemos os dois a partilhar-nos, vida
que nos fundia e nos distanciava.

MARÍA VICTORIA ATENCIA (1931)
Antologia Poética
(tradução de José Bento)

terça-feira, 5 de março de 2013

A RAPARIGA DAS ROSAS


Tu, que trazes as rosas, é rosas o encanto que trazes.
O que é que vendes? a ti? às rosas, ou às rosas e a ti?

DIONÍSIO, O SOFISTA (SÉC. I A.C.)
«Antologia Palatina»
Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o futuro
(Tradução de Fernando Pessoa)

segunda-feira, 4 de março de 2013

A NOITE NA ILHA


Dormi contigo a noite inteira junto do mar, na ilha.
Selvagem e doce eras entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.
Talvez bem tarde nossos
sonos se uniram na altura e no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento move,
em baixo como raízes vermelhas que se tocam.
Talvez teu sono se separou do meu e pelo mar escuro
me procurava como antes, quando nem existias,
quando sem te enxergar naveguei a teu lado
e teus olhos buscavam o que agora – pão,
vinho, amor e cólera – te dou, cheias as mãos,
porque tu és a taça que só esperava
os dons da minha vida.
Dormi junto contigo a noite inteira,
enquanto a escura terra gira com vivos e com mortos,
de repente desperto e no meio da sombra meu braço
rodeava tua cintura.
Nem a noite nem o sonho puderam separar-nos.
Dormi contigo, amor, despertei, e tua boca
saída de teu sono me deu o sabor da terra,
de água-marinha, de algas, de tua íntima vida,
e recebi teu beijo molhado pela aurora
como se me chegasse do mar que nos rodeia.

Pablo Neruda

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

PELAS MÃOS E PELOS OLHOS EU JURO


são as mãos que me trazem o amor dos homens
e me largam na fronteira de todos os segredos
que repousaram em mim como no breve espaço
de uma lua fugaz
também as tuas mãos haviam de chegar um dia assim
ou pelo menos foi isso que eu pensei quando
o teu corpo tocou ao de leve a sombra das águas
que tinham corrido ao longo das noites da tua ausência
mas às vezes o destino escreve-se
com inesperados visitantes
e o nosso quarto ficou cheio de vozes mas
nenhuma nos reconhecia por dentro das suas
mais absurdas dissonâncias
e foi então que eu soube que a felicidade
era apenas um complemento
muito circunstancial e remoto de lugar onde
em que nenhum passado que nos pertencesse
faria qualquer sentido
apesar de tudo os meus dedos
ainda procuram reter o sôfrego sabor das horas que faltam
para o prometido regresso
das palavras tecidas de fresco entre a penumbra
das nossas pernas
mas houve sempre desígnios imutáveis
eclipses ravinas ou a ácida saliva das marés
ou simplesmente a ferida de quem vinha
em voz baixa reclamar o que lhe fora roubado
e os meus dedos acabavam por recuar
e as palavras com que em tempos
tinhas esperado por mim
cansaram-se
e são hoje nódoas rosadas no meu corpo
como se o meu corpo fosse um mapa
onde o teu corpo deslocou minúsculas bandeiras
em tempo de guerra

(Alice Vieira)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

FEITIÇARIA ATRAVÉS DE UM RETRATO


Fixo os meus olhos nos teus, e aí
            Lastimo minha imagem ardendo nos teus olhos.
A minha imagem afogada numa lágrima transparente
            Descubro, quando olho mais para baixo.
Tivesses tu a maldosa habilidade
de matar através de imagens feitas e desfeitas,
Por quantas formas não executarias a tua vontade!
Mas agora bebi as tuas doces lágrimas salgadas,
            E ainda que mais derrames, eu partirei:
Desaparecida a minha imagem, desaparece o medo,
            De que possa ser lesado por tal arte;
Embora retenhas de mim
Ainda uma imagem, seguramente essa estará,
Dentro do teu coração, livre de todo o mal.

]OHN DONNE (1572-1631)
Poemas Eróticos
(tradução de Helena Barbas)


sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

O ANJO ENCOBERTO


arrasta-me pela lama como se gostasses de mim
num tratamento de beleza que me estraga a pele mas que me doura como um Sol que existe só para nós dois
por sermos um que foi feito à nossa medida          
antes do molde partir para longe            
para um sítio onde o amor não existe porque desiste
e eu sinto-te com a delicadeza da borboleta que vai fazer o tufão
e dá-me um beijo agora porque próximo não há    
é que não me lembro dele por ser depois
e os beijos são da cor dos lábios para condizer com a cor da pele que levas por cima do corpo
e trago-te comigo como a fotografia tipo passe que eu mostro ao universo na paragem do autocarro
e a senhora com dores    
porque foi operada à vesícula     
lê-te    
vislumbra-te pela dificuldade do papel rectangular que te mostra a beleza
que a máquina não viu por ser instantânea    
mas ainda assim a senhora diz
é tão linda a sua namorada
e ela não sabe que tu morreste
e que antes de morrer não me querias
e eu não lhe conto
e digo-lhe mentiras
e falo dos passeios no parque que não demos
e milho aos pombos que não demos
e apalpões nas bochechas dos filhos dos outros que não demos
e não demos porque não demos
porque não quiseste
porque não deixaram

e tenho as saudades que é possível ter da pessoa imaginária que quase esteve
e tenho a sensação de que a queria tanto junto de mim como os que estiveram para não a conhecer
estiveram lá quase
e eu estive quase lá                  
mas ela não deixou
e ela não está
e ela não esteve
e ela não é
e ela não sou
e ela não estamos
e ela não consigo
e ela não deixa
e ela não
não percebe as palavras        
por ser um cadáver amado até ao infinito
até ao último grito

e eu sou o anjo encoberto
e vou explicar como é que se vive
vive-se assim
sem dor
sem alma
sem paz
sem som
sem luz
sem são
sem triste     
nem errado
nem verme
nem lustre
vive-se

e tu vais ser a recordação que guardo na cabeça
o tempo vai ser o nosso tempo
e a história feita pelos livros serve para embelezar o nosso amor que é eterno e que nunca existiu


João Negreiros
(Luto Lento)

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

NOS MEUS BRAÇOS



Nos meus braços te acolhi
No meu coração te meti
Com ternura te abracei
Com loucura te beijei
Nas ondas do mar te escondi
Querendo-te só pra mim
Sonho louco, egoísmo
Não perguntei se querias
O querer deve ser mútuo
Não era isso que sentias

Não és ave de gaiola
Nem peixe de aquário
Tens uma alma generosa
E coração solidário
Anos de dor e sofrimento
Moldaram teu ser assim
Tens asas de anjo
Beleza de querubim

Meu egoísmo é insano
Queria-te só pra mim…
Agora sinto-me sozinho
Vendo-te nos braços de alguém
Costas voltadas ao passado.

Vivo de recordações
Destroçado e abandonado
Choro minhas ilusões…
De nada me arrependo
De todo o amor que te dei
Dos beijos que recebi
Sempre que estive a teu lado.

(m.p. – out/2011)

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

QUASI



Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d’ espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quasi vivido…

Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama,
Quasi o principio e o fim – quasi a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo… e tudo errou…
- Ai a dor de ser-quasi, dor sem fim… ¬-
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…

Momentos d’alma que desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ânsias que foram mas que não fixei…

Se me vagueio. encontro só indícios…
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos d’herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios…

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…

[...]

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO (1890-1916)
Poemas Completos

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

DEPOIS DE…




Depois de longa viagem a um santuário
em socos de madeira que cansam os músculos
o chá é mais amargo e os seios duros
tanto terraço para uma tarde

já não há mais oceano
não vejo o oceano debaixo das minhas andas
enquanto deambulo

as mãos nas coxas os pés nos pulsos
nu em pensamento
como um chicote feito de meias incomparáveis

o rádio está ligado o fumo do cigarro cai-lhe em cima
pelos prazeres de rebolar num pântano
a que chamam a Via Láctea
em terras Ocidentais longínquas sobre as árvores
onde moram as caveiras hilariantes

FRANK O’HARA (1926-1966)
Vinte e Cinco Poemas à Hora do Almoço
(tradução de José Alberto Oliveira)

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

OS VERSOS QUE TE FIZ


Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder…
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda…
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei…
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

(Florbela Espanca) 1894 – 1930