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Faixa Sonora

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

FRÉSIAS



Frésias são flores com cheiro a chá

e ela, aos trinta e sete anos, preferia-as

às flores que se vendem por aí

admitia a beleza mas não o esplendor

porque são tristes as repetições

num instante se tornam saberes

e ela, aos trinta e sete anos,

prezava apenas os segredos que mesmo ditos

permanecem como segredos

 

(em certas épocas, por alguma porta esquecida

escapava-se, sonâmbula, para o pátio

que dá acesso à mata

e, por vezes, iam buscá-la

gritando o seu nome ou com a ajuda dos cães

já muito longe de casa

 

tinha por hábito acender fogueiras

de que, depois, se esquecia

e por isso também os aldeões

a temiam)

 

nunca compreendeu a natureza da vida doméstica

imensa e aflita criança

incapaz de certezas

 

o que de mais belo soube

sempre o disse, de repente,

a alguém que não conhecia

 

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA (1965)

Baldios

 

sábado, 13 de dezembro de 2014

UMA ÁRVORE E O SOL



Árvore minha amiga, abençoada

Alminha vegetal, com que ternura,

Abres o brando seio à luz sagrada,

Que, como um vento místico, murmura.

 

Logo te viste mãe; e, para a Altura,

Ergueste as mãos, alegre e alvoroçada;

E lembravas assim a Virgem Pura,

Ao sentir-se do Espírito pejada.

 

E o teu corpo, todo ele, era uma flor.

E perfumes de idílio e casto amor,

O céu azul doirado embriagavam…

 

Mas, na sua quimérica alegria,

Essa árvore feliz nem sequer via

A sombra, que seus ramos projectavam…

 

TEIXEIRA DE PASCOAES (1877-1952)

As Sombras. À Ventura. Jesus e Pã

 

 

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

CANTO DE MIM MESMO



TODAS as verdades aguardam em todas as coisas,

Não apressam a sua entrega nem a ela resistem,

Não precisam de fórceps do obstetra,

O insignificante vale para mim tanto como o resto,

(O que é mais ou menos que um contacto?)

 

A lógica e os sermões jamais convencem,

O orvalho da noite cala mais fundo na minha alma.

 

(Só é assim o que se torna evidente para o homem e a mulher,

Só é assim o que ninguém nega.)

 

Um minuto e uma gota de mim acalmam a minha mente,

Creio que a gleba húmida se transformará em amantes e em luz,

E que a carne de um homem ou mulher é compêndio dos compêndios,

 

E que no sentimento que partilham há um cimo e uma flor,

E que a partir dessa lição proliferarão infinitamente até que tudo seja criado,

E até que um e todos nos deliciem, e nós a eles.

 

 

WALT WHITMANN (1819-1889)

Canto de Mim Mesmo

(tradução de José Agostinho Baptista)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

AS ALDEIAS



Eu gosto das aldeias sossegadas,

Com seu aspecto calmo e pastoril

Erguidas nas colinas azuladas…

Mais frescas que as manhãs finas d’Abril.

 

Levanta a alma às cousas visionárias,

A doce paz das suas eminências…

E apraz-nos, pelas ruas solitárias,

Ver crescer as inúteis florescências.

 

Pelas tardes das eiras – como eu gosto

Sentir a sua vida activa e sã!

Vê-las na luz dolente do sol posto,

E nas suaves tintas da manhã!…

 

As crianças do campo, ao amoroso

Calor do dia, folgam seminuas,

E exala-se um sabor misterioso

Da agreste solidão das suas ruas.

 

Alegram as paisagens as crianças,

Mais cheias de murmúrios do que um ninho,

E elevam-se às cousas simples, mansas,

Ao fundo, as brancas velas dum moinho.

 

Pelas noites d’estio, ouvem-se os ralos

Zunirem suas notas sibilantes…

E mistura-se o uivar dos cães distantes

Com o canto metálico dos galos.

 

GOMES LEAL (1848-1921)

Claridades do Sul

 

terça-feira, 25 de novembro de 2014

APARIÇÃO



A mulher que por mim passou na rua, há pouco,

foi uma coisa diáfana, gentil,

cedo, a pairar

na sombra dum jardim

com flores, em baixo, ajoelhadas,

ao senti-la na altura,

e mandando-lhe o aroma em lágrimas, desfeito,

para mantê-la em uma nuvem branca…

 

Mulher, coisa diáfana, vaga e bela, sem desenho,

logo fluido animando o colo duma nuvem,

nuvem, num ápice, trucidada pelo vento!

 

EDMUNDO BETTENCOURT (1899-1973)

 

Poemas de Edmundo Bettencourt

 

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

AO LONGE OS BARCOS DE FLORES



Só, incessante, um som de flauta chora,

Viúva, grácil, na escuridão tranquila,

- Perdida voz que de entre as mais se exila,

- Festões de som dissimulando a hora.

 

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila

E os lábios, branca, do carmim desflora…

Só, incessante, um som de flauta chora,

Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

 

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,

Cauta, detém. Só modulada trila

A flauta débil… Quem há-de remi-la?

Quem sabe a dor que sem razão deplora?

 

Só, incessante, um som de flauta chora…

 

CAMILO PESSANHA (1867-1926)

Edoi Lelia Doura

(antologia organizada por Herberto Helder)

 

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

AMOR INCONDICIONAL




Amar ao próximo ,

Seus defeitos

Além de suas virtudes

Enxergar nele, o reflexo do espelho

Ao mirar-nos.

 

 Quem é ele ?

É todo aquele ao nosso redor

E por vezes diz que nos ama,

Até que tenhamos uma falha

Igual à sua.

 

Amar incondicionalmente

Tarefa difícil, exercício diário

Necessário.

Incondicionalmente amar

Faz-nos seres especiais

Libertos das garras dos preconceitos,

Preceitos necessários à evolução

Quem é o próximo ?

È aquele a nos dizer que precisa ser amado

Compreendido,  acima de tudo.

 

Amar é respeitar, cuidar

Colocar-se no lugar.

Fazendo isto, 

São estes os primeiros passos

Indulgentes

Connosco e nosso próximo

Conseguiremos assim dizer:

Amo ao próximo como a mim mesmo.

 

Fernanda Pietra

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

AMOR



Vibrátil. fina, perfumada e clara,

Ondula a aragem que o amor provoca.

Longe, respira a vida. Aqui, o sonho.

Tudo é infância de águas e colinas

Na manhã dos teus olhos.

E voos, de mãos dadas.

E cantos, cantos de infinito amor,

Nos galhos, nas correntes e nas sombras veladas.

 

Envolve-se de nuvem nosso abraço.

Vibrátil, fina, perfumada e clara,

Ondula a aragem. Fadas e duendes

Agitam instrumentos na folhagem…

 

Vibrátil, fina, imperceptível, fluida,

Orquestra ao longe, no fundo dos sentidos:

Dedos de flores ondeiam sobre a pele

De céus indefinidos…

 

Cantam mistérios bocas fascinadas.

Abrem corolas, sobre a luz que as toca.

Vibrátil, fina, perfumada e clara,

Ondula a aragem que o amor provoca.

 

NATÉRCIA FREIRE (1919)

Antologia Poética

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

AMIGO



Mal nos conhecemos 
Inauguramos a palavra amigo! 
Amigo é um sorriso 
De boca em boca,
Um olhar bem limpo 
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão! 
Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?) 
Amigo é o contrário de inimigo!
Amigo é o erro corrigido, 
Não o erro perseguido, explorado. 
É a verdade partilhada, praticada. 
Amigo é a solidão derrotada! 
Amigo é uma grande tarefa, 
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!

 

(Alexandre O’Neill – 1924 – 1986)

 

terça-feira, 28 de outubro de 2014

ALGURES




Algures aonde eu nunca viajei, alegremente além de

qualquer experiência, os teus olhos têm o seu silêncio:

no teu gesto mais frouxo há coisas que me prendem,

ou que eu não posso tocar de tão próximas que estão

 

o teu mínimo olhar há-de facilmente desprender-me

embora eu me tenha cerrado como dedos,

tu sempre me abres pétala a pétala como abre a Primavera

(tocando hábil, misteriosamente)a primeira rosa

 

mas se teu desejo for encerrar-me, eu e minha vida

fecharemos em beleza, de repente,

como quando o coração desta flor imagina

a neve em tudo cuidadosa descendo;

 

nada do que existe para ser sentido neste mundo iguala

o poder da tua extrema fragilidade: cuja textura

me submete com a cor dos seus domínios,

representando a morte e para sempre em cada alento

 

(eu não sei o que é que há em ti que fecha e abre;

apenas alguma coisa em mim entende

a voz dos teus olhos mais profunda que todas as rosas)

ninguém, nem mesmo a chuva, tem tão finas mãos

 

E.E. CUMMINGS (1894-1962)

xix poemas

(tradução de Jorge Fazenda Lourenço)

 

sábado, 25 de outubro de 2014

ALÉM DE MIM


Quando o sol é um sorriso desfazendo
A escuridão soturna,
Nos meus olhos, também amanhecendo,
É beijo aceso a lágrima nocturna…
E quando a noite, espectro de outro mundo,
Por sobre a terra desce,
Todo o meu ser – tão pálido! – arrefece
E se torna sem margens e sem fundo. . .
Assim a minha vida é o fim das Cousas,
Seu estranho e fantástico destino!
As serras fragarosas
E o sol, astro divino,
Perdem-se no meu corpo em tempestade…
Meu corpo… ignoto mar;
Enlouquecida estátua de saudade,
A sonhar, entre nuvens, e a falar…
Que existe além de mim?
Silêncio, fria treva, solidão;
Um vago Azul sem fim,
A sombra da futura Criação…


TEIXEIRA DE PASCOAES (1877-1952)
Belo. À Minha Alma. Sempre. Terra Proibida

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

AGORA PODEIS TRATAR-ME COMO QUISERDES...



Agora podeis tratar-me

como quiserdes:

não sou feliz nem sou triste,

humilde nem orgulhosa

- não sou terrestre.

 

Agora sei que este corpo,

Insuficiente, em que assiste

Remota fala,

Mui docemente se perde

Nos ares, como o segredo

Que a vida exala.

 

E seu destino é ir mais longe,

Tão longe, enfim, como a exacta

Alma, por onde

Se pode ser livre e isento,

Sem actos além do sonho,

Dono do nada,

 

Mas sem desejo e sem medo,

E entre os acontecimentos

Tão sossegado!

Agora podeis mirar-me

Enquanto eu próprio me aguardo,

Pois volto e chego,

 

Por muito que surpreendido

Com meus encontros na terra

Seja o Aeronauta

 

Cecília Meireles

 

In “O Aeronauta”

terça-feira, 5 de agosto de 2014

A VIDA



É vão o amor, o ódio, ou o desdém;
Inútil o desejo e o sentimento…
Lançar um grande amor aos pés de alguém
O mesmo é que lançar flores ao vento!

Todos somos no mundo «Pedro Sem»,
Uma alegria é feita dum tormento,
Um riso é sempre o eco dum lamento,
Sabe-se lá um beijo de onde vem!


A mais nobre ilusão morre… desfaz-se…
Uma saudade morta em nós renasce
Que no mesmo momento é já perdida…


Amar-te a vida inteira eu não podia.
A gente esquece sempre o bem de um dia.
Que queres, meu Amor, se é isto a vida!


 

(Florbela Espanca)

quarta-feira, 30 de julho de 2014

A SOMBRA DO HOMEM



Quando, num sono aéreo, tudo dorme,

E a treva lembra luz adormecida…

E o silêncio, quimérico e disforme,

É só uma canção interrompida…

 

Quando um pinheiro, além, na indecisão

Da noite, que o perturba e lhe faz mal,

Se vê, perdido em vaga confusão,

Tornar-se um ermo e vago pinheiral;

 

Quando, na sombra espessa, ó minha fonte,

Desliza, anseio de água, a tua voz,

De som molhando o rosto do horizonte,

Que sofre e chora, às vezes, como nós…

 

Quando em paz tudo dorme, eu sonho e cismo.

Remorso? Exaltação? Delírio a arder?

E ouço vozes, que vêm dum fundo abismo,

Por minhas mãos aberto no meu ser!

 

E ouço vozes e passos… Quem me fala?

És tu, ó chuva? Ó vento? Ou serei eu?

Ah, como distinguir a minha fala

Das vozes que andam, tristes, pelo céu!

 

Já de tanto sentir a Natureza,

De tanto amar, com ela me confundo!

 

TEIXEIRA DE PASCOAES (1877-1952)

As Sombras, À Ventura, Jesus e Pã

 

terça-feira, 29 de julho de 2014

A MULHER DESCONHECIDA



É muito bela esta mulher desconhecida

que me olha longamente

e repetidas vezes se interessa

pelo meu nome

 

eu não sei

mas nos curtos instantes de uma manhã

ela percorreu ásperas florestas

estações mais longas que as nossas

a imposição temível do que

desaparece

 

e se pergunta tantas vezes o meu nome

é porque no corpo que pensa

aquela luta arcaica, desmedida se cravou:

um esquecimento magnífico

repara a ferida irreparável

do doce amor

 

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA (1965)

Baldios

 

domingo, 27 de julho de 2014

A GUERRILHEIRA




Eis a ocasião em forma de mulher

com a ponte do lábio galgando

a voz Seus cabelos ondulam

por dentro das estrofes

 

Na mesma noite dividida ao meio

como se um lado reflectisse o outro

a sombra que na folha me adelgaça os dedos

verte ainda alguns versos e pára

                                      Para quê

Pergunta a sucessão dos meus perfis iluminados

pelo volteio das luzes contrárias

E desatam-se das luzes os seus reflexos

a noite desdobra-se em metades imperfeitas.

 

SEBASTIÃO ALBA (1940)

A Noite Dividida